21 março 2014

Quem é ela?

Quem é essa de unhas vermelhas
Cabelo escorrido em tons de amarelo? 
Quem é essa de olhos castanhos 
Com pernas esguias e pele manchada? 
É ela que pinta na dança e borra a rua enquanto desfila. 
Colore as nuvens de rosa e o sol de laranja, 
Desenha o mundo redondo esverdeado. 
Sacode a tela da terra escura, 
Clareia o sonho de qualquer paleta... 
É ela.

19 março 2014

Música escrita

Queria poder ouvir a música das soltas palavras, 
Adormecer nas melodia das letras unidas, Chorar no silêncio das pequenas pausas.

Queria cantar no sussurro do texto, 
Sentir o calor de todos os parênteses, 
Esquecer o mundo em cada nota nova.

Dançar com as aspas e apóstrofos, 
Gritar sem medo e reticências, 
Fugir de qualquer ponto final.

Ao som de cada frase, 
No embalar dos longos parágrafos... 
Como gostaria. Como gostaria.

13 março 2014

O presente

Havia chegado o dia. O embrulho inquieto chamava a atenção da casa. No meio de todos os presentes embaixo da árvore, aquele se destacava pelo seu tamanho e movimentos. Começaram a abrir um por um, até chegar a vez do qual todos estavam curiosos por ver.
Era para ela, que desembrulhou  cuidadosamente por medo ou delicadeza. De dentro da caixa brotou um galo. Um galo... Ela se perguntava o porquê. Olhou bem fixo nos olhos dele esperando uma resposta esclarecedora. "Dourado! Surpreendente, não?!".
Ele vira o galo na última ida à Bulgária, se encantou por ele de tal forma que procurou algum pretexto para o levar consigo. A justificativa era o seu canto: kurikukuri! Que, jurava de pés juntos, escondia palavras de amor. A partir dali, todas as manhãs seriam embebidas numa sifonia quase perfeita ao som do canto do galo.
Não convenceu. A casa era pequena demais e não havia quintal. O pobre bicho ciscava as camas e corria atrás do cão pensando se tratar de uma galinha. A rotina estava de pernas para o ar.  Aos poucos ela dava sinais de loucura, enquanto ele pávido e sereno permanecia. O galo era fantástico demais para ter defeitos. Foi quando os dela começaram a aumentar. Se tornou implicante, chata, mal-humorada, rabugenta... E a lista só crescia.
Certa manhã, com um olhar apático ela levantou ao som do "kurikukuri", olhou para o seu companheiro, disse as mais belas palavras de amor, afirmando ser. tradução do cantar do galo daquele momento. Saiu para passear o galo de estimação nas redondezas da casa, como de costume, sob olhares curiosos da vizinhança. Teve um dia agitado, como qualquer outro de trabalho. Resolveu convidar uns amigos para jantar, o que se esmerou nos pratos servidos recebendo sinceros elogios sobre eles. Adormeceu num piscar de olhos. E acordou num sobressalto ao som de um grito. " Ahhhh! Eu comi-o!".
O sol já raiava alto e nem mais um pio se ouvia. Ela se ajeitara melhor no travesseiro, sorriu-lhe ironicamente e voltou a dormir.

11 março 2014

O sapato velho

E ele caminhava solitário na beira da estrada. Percorria quilômetros sem qualquer perspectiva de onde queria chegar, do que iria encontrar, do que precisava comer. Apenas andava. E nada mais. 

Começou a perceber o quão poderoso era o sapato que usava. Não importava o solo irregular, a lama, o sol escaldante, a areia irritante. O sapato não dava sinais de desgaste. Ele continuava trilhando e seus pés de sentiam mais confortáveis, a Terra lhe parecia mais aconchegante. 

Acompanhou o curso do riacho aproveitando o frescor da água no caminhar. Se equilibrou firme no trilho do comboio e se aqueceu no asfalto durante os entardeceres. Contou centenas de vezes as milhares estrelas do infinito firmamento, beijou as flores das mais variadas belezas, comeu os tons vivos dos pomares por onde passava. 

Até que cego sentou. Esticou suas pernas e adormeceu eternamente. As pessoas o viam ali, estirado no chão, se compadeciam da cena: um homem com sapatos velhos,  rasgados em fiapos, exibindo seus pés andarilhos maltratados em carne viva, dormia tranquilo num semblante feliz.